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1º CONGRESSO DE POESIA DO RECIFE,

ensaio relativo à participação de Vicente do Rego Monteiro

por Maria Luiza Guarnieri Atik

(doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, faz parte do corpo docente da Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie).

 

 

Texto extraído de:

ATIK, Maria Luiza GuarnieriVicente do Rego Monteiro -         um brasileiro na França.   São Paulo: Editora Makenzie, 2004.   221 p.   ilus. col.  Ex. bibl. Antonio Miranda   (p. 54-65)

 

(...)

          A residência de Rego Monteiro torna-se o ponto de encontro de artistas e intelectuais, e dessas reuniões informais nasce a ideia do 1° Congresso de Poesia do Recife, que se realizará em abril de 1941, com a participação de João Cabral de Melo Neto, Ledo Ivo, Willy Lewin, Rangel Bandeira, Benedito Coutinho, Cláudio Tavares e outros jovens artistas.

          Em novembro de 1940, Rego Monteiro, Willy Lewin, João Cabral de Melo Neto e José Guimarães de Araújo comunicam a intenção da revista Renovação de promover tal evento e, por meio de um artigo, esboçam os primeiros objetivos do Congresso.

          Assim, pela primeira vez no Brasil, segundo os seus organizadores, seriam discutidos os problemas relativos à Poética, entendida em sentido amplo, ou seja:

no de qualquer categoria de arte que receba o toque de valores legitimamente líricos: a pintura, o cinema, a fotografia, a arquitetura, não esquecendo o lirismo espontâneo, ingénuo — mas às vezes de

tão alta intensidade — de que se acham cheias as manifestações da chamada arte popular (Monteiro et al., 1940, p. 7).

 

          Além disso, o Congresso estaria aberto a todos os artistas e intelectuais, pois seus idealizadores não desejavam que se transformasse "no órgão de um grupo", fato tão comum entre nós. E não se limitaria "à discussão de estudos sobre a essência do fenómeno poético, sua revelação na arte ou sobre os que, em todos os tempos, constituíram-se seus portadores'" (Monteiro et al., p. 7), pois seria parte integrante de um projeto mais amplo que abarcaria exposições de pinturas e desenhos, exibições de filmes e montagem de uma peça teatral. Idealizado

nos moldes da Semana de 22, cujo programa incluía uma parte literária, uma plástica e uma musical, o Congresso pretendia se configurar em um grande painel em que todas as artes estariam representadas.

          Os primeiros ecos sobre o Congresso são registrados pela revista Renovação. Entre eles, podemos destacar a adesão do poeta venezuelano Franciquez Gusman, que enviou o seu então recente livro de poemas Grito; um pequeno artigo elogioso no Diário de Pernambuco, sobre a exposição de

pinturas de Joaquim Rego Monteiro; uma nota no jornal A Noite do Rio afirmando que a mensagem dos promotores do Congresso não agradou aos poetas locais e que acabava de ser fundado o comité "Anjo Livre", que se destinava a combatê-lo; e a resposta dada por Gilberto Freyre ao ser

interrogado sobre o evento, ou seja, que antes de tudo era preciso saber onde se encontrava Cícero Dias, "o maior pintor e poeta do Brasil". Resposta provocativa que tinha o intuito de ferir Rego Monteiro, uma vez que nessa época o laço de amizade que antes os unira continuava rompido.

          Em março de 1941, antes da abertura oficial do Congresso, foram publicados na revista Renovação dois textos de Rego Monteiro: "1° Congresso de Poesia do Recife" e "Banco Turístico do 1° Congresso de Poesia do Recife", cujo objetivo era traduzir o espírito do evento e ante-

cipar o teor de algumas teses que seriam apresentadas, e por isso aqui transcritos na íntegra:

 

 

1o CONGRESSO DE POESIA DO RECIFE

 

 

          O Congresso de Poesia está a se desenrolar na mesma planície, porém sensivelmente diferente de horizontes. Agora ele atinge apaixonadamente, apesar das reticências do mau gosto, os estranhos sítios onde as tempestades, verdadeiramente eternas, devastam os caminhos, nivela [sic] os valados, fazem emudecer as arquiteturas medievais e rugir o cimento armado.

          Abrimos as janelas da Poesia sobre um espetáculo inédito, que em hipótese alguma poderá nos iludir. Aliás, sem nenhuma explicação possível, o que é autêntico e puro é inconfundível. No entanto essas metamorfoses somente são possíveis nos dias de festa e sob transparências excepcionais. Assim o brilho das iluminações poéticas atingirá o máximo quando todos os rostos dos poetas do mundo estremecerem de alegria. Coincidência curiosa: não tendo o gosto dos paralelos e dos paradoxos, penso, entretanto, nos incessantes retratos de mulheres de que se acham repletos os museus do mundo, de anedótico e de vulgar por falta do acessório indispensável da poesia.

          Não será na luz impressionista das expressões reflexas dos poetas mortos, mas dos poetas vivos, que o Congresso se verá assistido numa projeção capaz de prolongar-se às expressões-limites sem que por isso ele seja menos vivo, mais vestido, mais adoravelmente enriquecido de ideias gínglimos [sic].

          Os debates serão cobertos de flores invisíveis, para que os espíritos inclinados ao erro e à confusão, possam ser levados às divagações superficiais daqueles que dormem de olhos abertos.

          Não é sem admiração descritiva que assisto à formação do 1° Congresso de Poesia, por nós lançado em fraterna compreensão de três autênticos poetas. Forçando a indolência do nosso vocabulário, sempre disposto à incongruente caçada de belas transeuntes, mais vidradas do que estalagmites [sic], desconcertamos algumas consciências retrógradas, em tromba d'água jogando-as de costa - era fatal (Monteiro, 1941 c, p. 8).

 

          Como um grito, as palavras de Monteiro ecoam no papel tentando agitar culturalmente os espíritos naquele momento. Propondo uma nova atitude em relação ao fenômeno poético, exalta o autêntico, o puro, o inusitado. Mas inusitadas são, sobretudo, as imagens relativas à linguagem poética que se irradiam ao longo do texto. Dando precedência ao plástico sobre a mensagem, Monteiro rompe os limites entre poesia e pintura e propõe, implicitamente, uma sintaxe visual, permeada de planos e gradações luminosas ("horizonte, valados, janelas, ideias gínglimos, transparências, brilho das iluminações poéticas, luz impressionista, expressões reflexas").

 

                    BANCO TURÍSTICO DO 72 CONGRESSO DE POESIA DO RECIFE

 

Capital: 10.000.000 liras e alaúdes realizados.

Este banco abre contas correntes a vista e a prazos salmódicos.

Contas correntes decorrentes de elegias.

Cede giros e cartas de crédito-poético para Europa,

França e Baía.

Desconta giros sobre todos os planetas.

Compra e vende contos, prosa e poesia.

Encarrega-se de todas as transações de valores simbólicos,

românticos, plásticos, expressionistas, futuristas,

ilusionistas e suprarrealistas cotados ou não cotados.

Não faz transações com inflações académicas.

Suas cotações não sofrem deflações epidêmicas
 (Monteiro, 1941 c, p. 8).

 

          O que há de novidade na tessitura do texto são as relações estabelecidas entre a tradição e a vanguarda poética. Tradição entendida não como algo a ser desprezado ou ultrapassado, mas como linguagem poética aberta a uma constante recuperação de valores, que numa relação dialógica com os valores presentes pode gerar um discurso novo. No caso, um discurso irônico, vinculado ainda a uma realidade circunstancial, a do mundo aos negócios, cujo código específico é retomado e reestruturado no interior da mensagem.

          Em abril de 1941, na abertura do evento, assim noticia o Diário de Pernambuco:

 

Iniciando a reunião o poeta Rego Monteiro pronunciou algumas palavras alusivas ao ato, procurando esclarecer o caráter singular do Congresso, que não perseguia nenhum dos fins que, geralmente, têm em vista os congressos.

 

          Para Willy Lewin (1971, p. 26), o Congresso não perseguia nenhum objetivo determinado, tanto que aprovou por unanimidade o filme

 

Do mundo nada se leva, espécie de contestação, pioneira e bem-humorada, ao establishment bem-pensante ou ao American Way of Living— antecipando, de algum modo, a essência da atual filosofia hippie - e, principalmente, pelo ternário proposto e distribuído por Vicente,

 

do qual destacamos alguns títulos:

 

"Mobiliário interior da poesia, estilo e quadricromia" - Vicente do Rego Monteiro;

"A história do papel pintado e a poesia mural" — Otacilio Colares;

"Propriedades gerais do subsolo poético e as inculturas fecundas" — Ledo Ivo;

"Vitrinas e instalações ao gás néon e a poesia utilitária" - Gastâo Bittencourt de Holanda;

"Bares, Cafés, Restaurantes e Dancing e a poesia inteiramente em cores" — Américo Torres Bandeira;

"A sala de jantar, o quarto de dormir, no tempo e no espaço e a poesia dos móveis sem estilo" - Willy Lewin;

"Os estranhos suicídios pelos instrumentos de ética e seus sucedâneos na poesia" - João Cabral de Melo Neto;

"Urbanismo e poesia ao ar livre" — Laurenio Lima, Renovação, n. 3, p. 5, 1941).

 

          A divulgação antecipada dos títulos e dos expositores tinha uma intenção estratégica. Os congressistas desejavam chocar o público e confrontar as reações dos críticos. As teses, em sua maioria, foram substituídas por outras menos agressivas, e, das 23 anunciadas, apenas nove aparecem nas páginas da revista Renovação, sendo, portanto, difícil precisar todos os participantes do evento.

          As notícias e as interpretações sobre o Congresso foram veiculadas pela imprensa local, no Diário de Pernambuco, Diário da Manhã, Jornal Pequeno, e transcritas, posteriormente, na revista Renovação, em um número especial, publicado em junho de 1941.

          Aqueles que apoiam o Congresso citam as inúmeras adesões ao movimento, comentam a repercussão em âmbito nacional e a seriedade das propostas em discussão, salientando ao mesmo tempo que o evento constituía uma prova da nossa neutralidade em relação à Segunda Guerra Mundial. O artigo "O Brasil hoje", publicado no Diário da Manhã, resume bem a opinião dos críticos favoráveis à realização do Congresso:

 

A repercussão deste movimento orientado pelo pintor Vicente do Rego Monteiro envolve hoje o país inteiro, donde chegam adesões cheias de simpatia e compreensão e também comentários da imprensa e falta de confiança. Acham, alguns observadores, inoportunas e improdutivas as discussões em tomo de assuntos tão íntimos e distantes daqueles que absorvem, no momento, as atenções internacionais.

          Essas divergências naturalmente contribuem para estabelecer o ponto de apoio e equilíbrio do congresso, mas ressalta logo, da parte negativa, um erro psicológico assinalável até mesmo pelas criaturas mais simples. Si [sic] não somos nem pretendemos ser beligerantes, por que acompanhar a marcha deles tão de perto, a ponto de renunciar aos nossos ideais e sonhos mais caros?

          [...] o Congresso de Poesia do Recife, aliás o primeiro de que há notícia na América, vai constituir uma das provas definitivas de nossa neutralidade. A tese não é falsa porque nele só poderão tomar parte os homens livres de qualquer agitação política, que conservem o espírito puro e aberto às belezas da vida e aos mistérios da poesia (Renovação, n. 3, 1941, p. 6).

 

          Em agosto de 1940, por meio de um edital da revista Renovação, Rego Monteiro já contestava o nosso envolvimento nos conflitos mundiais, afirmando que não éramos um povo beligerante e que o Brasil precisava "afirmar-se perante o mundo, pela sua energia e grandeza". E, dirigindo-se à sociedade brasileira em geral, propunha "a defesa da nossa cultura e da nossa civilização, através de uma marcha para o oeste, uma marcha introspectiva para a descoberta da alma virgem do Brasil [...]" (Monteiro, 1940g, p. 5).

          Como bem nos mostra Nelson Werneck Sodré (1982, p. 581),

 

na época da ascensão fascista no mundo, a burguesia brasileira, assustada com o movimento de massas no país e a tomada de consciência por parte de largas camadas populares, opta pelo avanço isolado, abandonando a aliança.

 

          No campo das letras, o segundo momento modernista, que tinha se iniciado num clima de liberdade, conhece os rigores da censura e da repressão, que determinam

 

o aparecimento de uma poesia retórica e o advento da ficção psicológica, ambas correspondendo à fuga da realidade, ao mesmo tempo que a safra extraordinária do ensaísmo, entre 1930 e 1935, declina e desagua no apoucado ensaísmo de louvação fascista (Sodré, 1982, p. 581).

 

          Assim, para os que apoiavam o Congresso de Poesia, a iniciativa de Rego Monteiro significava, de certa forma, um passo importante para a reconquista da liberdade de expressão.

          Entre aqueles que se opunham à realização de tal Congresso, a crítica mais feroz foi, sem dúvida, a do secretário perpétuo do Instituto Histórico da Academia Pernambucana de Letras e da Federação Carnavalesca, o sr. Mário Melo, (1941, p. 7), que fez as seguintes afirmações:

 

Sempre considerei esse Congresso de Poesia, a julgar por seus Oganizadores, pilhéria de desocupados.

Suponhamos, por exemplo, que os charlatães, curandeiros, benzedores de espinhela caída, catimbozeiros, etc., se reúnam para tratar de problemas de medicina, ou de higiene social. Poder-se- á chamar isso de Congresso de Medicina?
[...]

Li a relação das pessoas que compareceram ao chamado Congresso de Poesia. Catei o nome dum poeta como se cata ouro na praia. Não vi nem um. Desafio a que m'os aponte dentre as pessoas que segundo a relação publicada pelos jornais, foram à casa do pintor Vicente do Rego Monteiro.

[...]

Concebo que teria sido aquilo reunião de charlatães da poesia, de rábulas de versos, de gamelas de versificação.

Congresso de Poesia, não! Quando muito de profanadores da Poesia.

 

          Se, para muitos, as propostas apresentadas no Congresso eram loucas e descabidas, para outros eram extremamente pertinentes, pois representavam um posicionamento dos intelectuais brasileiros em relação aos acontecimentos mundiais. Mesmo não sendo evidentes, para os que o criticavam, os objetivos do Congresso, este foi no seu âmago, de vários aspectos, um Congresso de poesia e de pesquisa sobre o fenómeno poético. Talvez um pouco fora do espaço e do tempo, pois já havia principiado a fase pós-modernista, e a grande bomba lançada sobre o marasmo, o comodismo e a estagnação reinantes na vida intelectual brasileira tinha sido detonada, em São Paulo, pela Semana de Arte Moderna de 1922.

          Enquanto a Semana de 22 constituiu num ponto de partida para que uma nova estética fosse implantada entre nós, tendo como preocupação basilar a construção de uma "genuína cultura nacional", o evento de Pernambuco ficou circunscrito a um grupo de poetas e artistas. As teses apresentadas permitiram aos congressistas uma reflexão sobre algumas ideias estéticas do passado e do presente, porém não provocaram uma revolução cultural ou literária, nem impulsionaram um novo movimento artístico.

          Quanto ao teor dessas teses, constatamos, em geral, inúmeras referências às vanguardas europeias, mas são, sobretudo, os autores pré-vanguardistas ou da "belle époque", os pontos de interesse para os quais converge a maioria dos congressistas. De Rimbaud tomam a concepção do poema como forma de conhecimento; de Verlaine, a ruptura entre o verso e a música e, de Baudelaire, as analogias e o princípio das correspondências sensoriais.

          Entre as diversas tendências estéticas surgidas no início do século XX (como Futurismo, Dadaísmo, Expressionismo, Cubismo), o Surrealismo assume uma posição de destaque entre os congressistas.

          Esse movimento, que cronologicamente é o último da vanguarda europeia, surgiu em 1924 quando André Breton lançou o Primeiro Manifesto Surrealista, definindo as suas principais diretrizes.

 

          Embora ateu, André Breton acreditava numa "super-realidade" das coisas, num plano mais profundo e mais verdadeiro do universo, que se manifestaria em nossa existência cotidiana por sinais e coincidências aparentemente inexplicáveis (o "acaso objetivo"). Haveria dois modos de atingir essa "super-realidade": libertar o inconsciente onde residem, em sua pureza primitiva, as imagens que a civilização recalcou; ou explorar conscientemente os sinais fornecidos pelo "acaso objetivo", utilizando-se todos os meios disponíveis: astrologia, alquimia, cabala, aritmosofia, etc. (Perrone-Moisés, 1973, p. 72).

 

          Em torno de Breton, poetas e pintores, entre os quais Philippe Soupault, Louis Aragon, Antonin Artaud, René Crevel, Paul Eluard, Robert Desnos, Jacques Prévert e Roger Vitrac, iniciam uma série de estudos e experimentações psicanalíticas. Na exploração do inconsciente, do sonho e do maravilhoso, transformam a poesia e a pintura em instrumentos de conhecimento, de investigação.                              

          Segundo Michel Carrouges, o Surrealismo se configura em primeiro lugar como uma filosofia "no largo sentido desta palavra, porque ele exprime uma nova concepção do mundo e busca a posse do segredo do universo" (apud Teles, 1972, p. 125), e só depois se constitui como uma poética. Tal poética, ao se libertar da sintaxe e dos elos lógicos, procura, por meio do automatismo verbal ou escrito, expressar as revelações trazidas pelas palavras e o funcionamento real do pensamento.

          A linguagem passa, então, a ser concebida como uma conquista pessoal e poética e, à medida que vai estendendo múltiplas possibilidades de incoerentes leituras da realidade, busca sua própria coerência na diagramação do texto, ao absorver a diversidade de respostas provenientes dos estímulos da realidade.

          Se, num primeiro momento, com base nos estudos de Freud, os surrealistas valorizam a exploração do inconsciente, as narrações dos sonhos e ás experiências com o sono hipnótico, a partir da publicação do Second Manifeste du Surréalisme, uma nova fase se inicia, tendo agora como base os princípios marxistas. A poesia concebida como instrumento de investigação do subconsciente cede lugar à poesia de agitação social, de caráter revolucionário. Esse posicionamento abre espaço para adesões importantes como as de Tristan Tzara, René Char, Bunuel, Salvador Dali e de alguns surrealistas belgas, mas ocorrem, sobretudo, exclusões e partidas, como as de Jacques Prévert, Raymond Queneau, Rogér Vitrac, Michel Leiris, Robert Desnos, que lançam o panfleto "Un cadavre" contra Breton, em resposta ao "Segundo Manifesto".

          Tais fatos não impediram que o movimento tivesse continuidade nas décadas seguintes, tanto que seria retomado também aqui no Brasil, na década de 1940, durante o desenrolar do l2 Congresso de Poesia. A postura dos congressistas em relação ao movimento surrealista pode

ser apreendida facilmente nó seguinte fragmento:

 

          Os responsáveis pela realização do 1a Congresso de Poesia declaram e esclarecem que não lhes interessa aplicar o surrealisme como escola, como atividade de um grupo que na França criou o movimento, há pouco mais de dez anos, e insiste em mantê-lo com a sua ortodoxia integral, que, aliás, foi pouco a pouco abandonando o seu primitivo aspecto de sondagem poética para assumir outros desagradavelmente doutrinários de solução total— política, social, filosófica, etc.

          O que não se pode porém, obscurecer, sem grave injustiça, é a incontestável lição de poesia que o surrealismo recebeu de outros e ampliou no mundo. Essa perdurará, sob muitos aspectos, sobretudo sob aquele que mais repugna aos espíritos excessivamente críticos e lógicos: o seu denso mistério, a sua distorsão [sic] angustiosa, a sua atmosfera de sonho e de outro mundo, que no dizer de Marcel Raymond nos anuncia, às vezes a iminência de um acontecimento metafísico.

          [...] Seremos, pois, surréalistes como o foram [sic] Lautréamont, Blake, Baudelaire, Rimbaud, Edgar Põe, inúmeros gravadores ou pintores da idade média, os arquitetos e decoradores italianos do Settecento com suas fabulosas construções fantasistas e os seus oníricos interiores trompe l'oeil (Renovação, n. 3, 1941, p. 4).

 

          Caminhando, sem dúvida, em direção à poesia onírica, à fantasia, ao poder sugestivo nascido da sonoridade da linguagem, em que se aglutinam traços do surrealismo e imagens plásticas e arquitetônicas, os participantes do Congresso ressaltam alguns elementos da lírica moderna que devem continuar amando como deflagradores do discurso poético.

          Quanto à tese apresentada por João Cabral de Melo Neto, "Considerações sobre o poeta dormindo", o primeiro aspecto que chama a atenção é o próprio título. Num primeiro momento, este atua como um elemento irônico e provocativo, mas a leitura do texto nos remete a um fato relatado por André Breton, no seu Primeiro Manifesto do Surrealismo. Segundo ele, o poeta Saint Pol-Roux seguia diariamente um mesmo ritual, ou seja, na hora de adormecer, pedia que colocassem sobre a porta de sua mansão o seguinte aviso: "O poeta trabalha".

          Tal fato, contudo, é tomado por Breton como uma imagem que concretizaria o seu conceito de "super-realidade", ou de "realidade absoluta", para onde dois estados aparentemente contraditórios, o sonho e a realidade, convergiriam.

          João Cabral não ousa aprofundar o conceito de "super-realidade" ou abordar as experiências feitas pelos surrealistas com o "sono hipnótico". Sua tese gravita em torno da distinção entre o sono e o sonho e a relação deste com a poesia. Para o poeta, o sonho é como uma obra de arte,

 

uma coisa sobre a qual se pode exercer uma crítica. [...] Uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. O sonho é uma coisa que pode ser evocada, que se evoca. Cuja exploração fazemos através da memória. Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós exercermos um esforço de

reconstituição. Porque é preciso lembrar que o sonho é uma obra cumprida, uma obra em si. Que se assiste (Melo Neto, 1941, p. 8).

 

          Assinala, entretanto, que o sono contrariamente ao sonho é "uma aventura que não se conta, que não pode ser documentada [...] O sono é um estado [...] em que estamos ausentes. Essa ausência nos emudece" (Melo Neto, 1941, p. 8). Assim, existe entre o sono e o sonho uma relação de causa e efeito. E o sono que permite que o sonho se manifeste, e as dimensões e os ritmos atingidos nos momentos de sonho compõem o clima deste que é o mesmo clima da poesia: "um clima de tempestade, uma imagem da própria aparência do homem dormindo" (Melo Neto, 1941, p. 8).

          E é justamente com uma obra intitulada a Pedra do sono que, em 1942, João Cabral faz sua estreia no mundo literário, impulsionado pela subjetividade e pelo Surrealismo. Abandonando os resquícios surrealistas nas obras seguintes, o poeta volta-se para os objetos, para as coisas e, à medida que vai despindo o poema de traços supérfluos e sentimentais, tenta atingir uma nova concepção poética, isto é, a poética do "não-eu", que constitui a meta principal de sua trajetória literária.

          Já Ledo Ivo, falando sobre as "Propriedades gerais do subsolo poético e as inculturas infecundas" (1941b, p. 12), retoma a temática do sonho, unindo-a, contudo, ao mundo noturno, em cuja atmosfera repousam todas as correntes do lirismo moderno,

 

quer com o automatismo verbal dos surrealistas, com a projeção da presença poética oriunda do inconsciente, da exploração do caos e do desespero do sonho, quer com a reação do poeta ao sol lógico do mundo real.

 

          Não lhe interessa, entretanto, falar sobre a mensagem noturna que o poeta capta e transmite aos homens, e sim dessa atmosfera noturna que cria um mundo mágico, "um ambiente de foto-montagem que distingue o poeta dos outros homens" (Ivo, 194lb, p. 12). O mundo necessita de escuridão, de silêncio, pois a realidade não mais satisfaz o homem. A escuridão  mostra-lhe um mundo que forçosamente é aceito como irreal, "porém susceptível de existir, porque o sonho é uma irrealidade que existe dentro do silêncio de nosso mundo" (Ivo, 194lb, p. 12). E apoderando-se de uma afirmação de Jean Cocteau, "plus réel que le réel“ ["mais real do que o real"]. Lêdo Ivo tenta nos mostrar que o mundo poético, embora muitas vezes incompreensível, é extremamente lúcido.

          Ele ressalta, ainda, que a poesia tem um aspecto misterioso. O termo é empregado pelo articulista não em sua acepção de oculto, obscuro, enigmático, mas para explicar o poder da poesia na transfiguração da linguagem. Ao explorar a sonoridade da língua, a plasticidade das imagens, as analogias, o poeta cria uma nova harmonia entre os elementos. Harmonia misteriosa, que permite a expressão de uma visão de mundo, pelo uso inusitado dos vocábulos.

          Já para Rimbaud, enfatiza Willy Lewin em sua tese "Homenagem a Rimbaud" (1941 b, p. 13), o objetivo do poeta era "chegar ao desconhecido", tentar "iluminar plenamente e pela poesia as zonas ocultas do Mistério absoluto, do Conhecimento total". Como se sabe, a poética de Rimbaud se configura como uma poética de busca, cujo objeto perseguido é definido, em termos negativos, como o "não-usual", o "não-real", o "outro". Porém, o grande drama do poeta foi, segundo Lewin, querer tudo da poesia, até mesmo o que ela não poderia lhe dar. Tudo para chegar à compreensão do sobrenatural.

          Reivindicar a condição de vidente para o poeta não é certamente uma novidade. Tal pensamento já estava presente entre os gregos e foi retomado por Rimbaud na sua ânsia de abrir as portas do Mistério absoluto. A novidade está, talvez, na forma como Otávio de Freitas Júnior aborda essa questão em "Notas sobre o fenómeno poético" (1941, p. 12). Para ele, a poesia não é forma, e sim experiência, e o poeta é, sobretudo, um ser participante, que "sente necessidade permanente de ação". Quando a ação é "expressional", temos dois tipos de poetas: os artistas, como Mallarmé e Valéry, e os videntes, como Rimbaud e Lautréamont. Segundo o articulista, somente o poeta que necessita da palavra como meio de expressão é de fato autor de poemas, pois "quando a ação é imanente, o poeta é mudo, de vida interior em poesia (Rimbaud na África, eremitas, ascetas, terroristas balkanicos [sic], Murilo Mendes nos intervalos entre os poemas, etc.)" (Freitas Júnior, 1941, p. 12).

          O Congresso de Poesia do Recife deu também oportunidade para alguns congressistas procederem ao balanço do Modernismo brasileiro. Lêdo Ivo, por exemplo, desenvolve ao longo de sua tese, "Propriedades gerais do subsolo poético...", anteriormente citada, o caminho percorrido pelos nossos poetas e escritores, comentando as obras de Mário de Andrade, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e outros. E, segundo Ivo (194lb, p. 22), um fato é inegável:

 

a chuva modernista adubou a literatura nacional. Foi simplesmente um movimento, como o surrealismo na França. Teve seus Cendrars, Cocteau, Eluard, Soupault, Vitrac, Aragons. A molecagem literária era intensa, porém serviu simplesmente para revisar valores, destruir sepulcros caiados, sacudir um pouco a preguiça intelectual.

 

          A Semana de Arte constituiu a proclamação de nossa República Literária e, embora tenha sido um grande circo, produziu muitos clowns de sucesso como Antônio de Alcântara Machado, Oswald de Andrade e Mário de Andrade, abrindo ainda espaços para que se plasmassem outras revelações pós-modernistas, como as obras de Graciliano Ramos, de Jorge Amado e a visão crítica e segura de Tristão de Ataíde. Infelizmente, acrescenta Lêdo Ivo

(1941 b, p. 26), com o passar do tempo formou-se o submodernismo

 

parente pobre do outro, isto é, chuva de verão, sem nenhum efeito, pois as árvores que estavam nascendo traziam a marca do adubo gostoso daquela outra chuva tempestuosa e violenta, verdadeira chuva de pedra.

 

          Assim, ao mesmo tempo que reconhece a importância do trocadilho, do humor como um contraponto ao falso refinamento academista, da associação de ideias e do fluxo do pensamento como processos de desmascaramento da linguagem tradicional, Lêdo Ivo faz uma crítica severa aos escritores que, buscando a originalidade a qualquer preço, se perderam no uso excessivo de imagens, paradoxos, trocadilhos e piadas.                  

          Como vimos, existem muitos pontos de contato entre as teses apresentadas e os movimentos da vanguarda europeia, sobretudo em relação à renovação artística e ao fenômeno poético. Mas a posição de Vicente do Rego Monteiro não pode ser definida por uma única afirmação, pois vivenciou em Paris as várias tendências organizadoras de uma nova estrutura estética e social, produzindo, nesse período, suas obras plásticas mais significativas. Tentaremos, contudo, mostrar como se posiciona o mentor do Congresso diante da arte e da poesia, na década de 1940.

 

 

Do Paleolítico Superior à Idade Moderna

 

          Rego Monteiro apresenta também uma tese nesse Congresso, publicada pela revista Renovação e por uma separata, em duas versões: em português e em francês. Sua tese, "Mobilier intérieur de la poésie style et quadrichromie" ou "Mobiliário interior da poesia estilo e quadricromia", está

dividida em onze subtítulos: 1. Mobiliário interior da poesia (introdução); 2. Mobiliário poético quaternário; 3. Idade Média; 4. Mistérios e Milagres; 5. Velhas tapeçarias de França; 6. Desfile da "Dama de Licornio" [sic, por A Dama do Unicórnio]; 7. Difícil passe de Mágica; 8. Idade Moderna Cinema Ballet; 9. Sport-T.S.E; 10. Quadricromia; 11. Conclusão.

          Na introdução, Monteiro (1941i, p. 17) ressalta que o objetivo do seu ensaio é tentar realizar "uma viagem de atmosfera através da poesia pelo seu mobiliário". Entretanto, precisa que mobiliário interior da poesia não significa "estilos de móveis para poesia", pois o verdadeiro poeta é aquele que diante de dois ou três objetos é capaz de criar, por um processo de meta-

morfose, "ritmos novos para seu atelier" (Monteiro, 1941 i, p. 17), ou melhor, de sentir próximos e conexos elementos considerados isolados e heterogêneos. Assim, "uma nuvem pode ser um leito de colunatas e de baldaquino rosa [...] Uma gaiola de pássaros pode se transformar numa bela dama de anquinhas com arcos de baleia e ligas violetas" (Monteiro, 1941i, p. 17) (Figura 31). E é justamente esse "dualismo mágico-poético" que distingue o "legítimo poeta tapeceiro do frio e lógico pastichador" (Monteiro, 1941 i, p. 17).

 

 

 

 

          De forma sucinta, Rego Monteiro passa a discorrer sobre o "Mobiliário poético quaternário", estabelecendo uma relação entre poesia mural e decoração parietal. Para ele, a primeira tentativa de poesia mural foi realizada pelos madalenianos (que viveram na cidade pré-histórica de Dordogne, cujo nome "Magdalénien" foi atribuído ao último período Paleolítico Superior) e pode ainda ser vista na caverna "de Altamira, na Espanha, e na Marsoulas (Alto-Garona), em França" (Monteiro, 1941 i, p. 18) (Figuras 32 e 33).

 

 

 

          Essas pinturas rupestres são consideradas por muitos estudiosos obras realmente artísticas, pois não se trata de simples desenhos, feitos por crianças, mas obras de adultos para adultos, uma vez que as incisões feitas nas rochas se encontram em salas de difícil acesso no interior das cavernas. As formas de animais, gravadas nos sulcos da conformação natural das rochas, em plena corrida, exaustos ou feridos, são impressionantes e possuem um alto grau de realismo. A gama de cores extraídas de pigmentos naturais (o carvão para o preto, o óxido de ferro para o vermelho, a terra para os tons de ocre) é particularmente rica e foi habilmente incorporada nas formas animais para lhes dar maior relevo.

          A arte pré-histórica é frequentemente animalista; raramente a figura humana é representada, exceto, como nos aponta Monteiro, "no afresco policromo do rochedo de Cogul em Lerida (Catalunha)", onde temos a representação de "nove mulheres em torno do sátiro; do feiticeiro mascarado dansando [sic], da caverna dos Três Irmãos, e das figuras antropomorfas da

Caverna de Marsoulas, França" (Monteiro, 1941i, p. 18).

          Essa predominância de animais nos afrescos poderia conter um duplo significado: o de representar um meio de sobrevivência na sociedade primitiva ou o de registrar os ancestrais dos próprios homens. Mas para os etnógrafos, afirma Rego Monteiro (1941i, p. 18), "a arte madaleniana tem um fim exclusivamente mágico, sem a menor intenção decorativa". Talvez pudéssemos afirmar que eram realizados nas cavernas rituais de caça diante dessas imagens monumentais (entre um e quatro metros de largura), com a finalidade de preparar psicologicamente a tribo ou o grupo de caçadores para enfrentar os animais, utilizando-se apenas de armas precárias.

          O significado mágico desses desenhos é um problema para ser resolvido entre etnógrafos e sociólogos, pois, para Rego Monteiro (1941i, p. 18), "feitiçaria, 'envoutement', animismo, magia" é igual a poesia.

          Na verdade, o reconhecimento do parentesco entre poesia e magia é muito antigo. O que ocorreu foi que o homem na sua evolução, do ponto de vista racional, afastou-se dele progressivamente, e o Humanismo e o Classicismo contribuíram, de certa forma, para enterrá-lo. A retomada desse parentesco começa a aparecer timidamente nos fins do século XVIII. Mas é

com Poe, Baudelaire, Valéry, Mallarmé que a poesia restabelece os laços com a magia, à medida que esta renuncia à ordem objetiva, lógica, gramatical, em favor das analogias, das forças sonoras da linguagem.

          Júlio Cortázar, em "Para uma poética", retoma essa questão e, baseando-se na analogia poética e na teoria de Lévy-Bruhl sobre a mentalidade pré-lógica do primitiyo, aproxima o poeta do mago, "caracterizando a magia poética como uma operação metafísica, visto que fundada num desejo de posse da realidade no plano do ser" (Arrigucci Júnior, 1993, p. 13).

          Cortázar salienta que o poeta não é um primitivo, mas um homem que aceita como satisfatória, da mesma forma que o primitivo, toda conexão analógica. A metáfora e o símile são formas mágicas do princípio de identidade, formas poéticas utilizadas para apreender o real. Tanto no poeta como no primitivo, existe uma mesma intencionalidade na direção analógica. A magia do primitivo e a poesia do poeta são formas de conhecimento e de posse da realidade. O poeta é esse homem que acata as formas primitivas com toda a magia que as envolve. E é nas formas primitivas, segundo Rego Monteiro, que encontramos a origem da poesia de aposento.

          Continuando sua viagem através do mobiliário da poesia, Monteiro (1941i, p. 18) passa da poesia de aposento para a poesia de exterior, presente nas formas arquitetônicas da Idade Média.

 

          Ogival primário, fulgurante, flamejante: florido de folhagens, de vinhas virgens, de folhas de couve e cerejeiras; de animais exóticos como coroamento de balaustradas, monstros policéfalos [sic], bestas apocalípticas, dragões e quimeras, gargulhas [sic] se despejando das fachadas.
          Toda a Bíblia, Velho e Novo Testamento. Belas e augustas imagens se acotovelando com seres disformes, careteiros, dragões alados, grifos, larvas, salamandras.

 

          Utilizando-se de uma linguagem deliberadamente enumerativa, Monteiro descreve, por meio de uma superposição de imagens, as principais características do estilo gótico surgido na França, no século XII.

          O estilo gótico atribuía uma ênfase especial à fachada e à nave central das catedrais, e essa mesma ênfase é dada por Monteiro, no seu texto, ao privilegiar a estatuária medieval e ao destacar dois elementos estruturais da construção arquitetônica gótica: a ogiva ("ogival primário") e a balaustrada ("como coroamento de balaustradas").

          A escultura gótica era sobretudo sacra, e a iconografia impunha algumas regras que deveriam ser respeitadas pelos artistas. As figuras sacras ocupavam sempre uma posição de destaque nos portais, contrafortes e vitrais, ao serem recriados cenas e episódios bíblicos, ao passo que as figuras profanas deveriam ficar num plano inferior. Rego Monteiro, contudo, não segue as regras, dá maior relevo às representações de animais fantásticos ("monstros policéfalos, salamandras") e às de animais reais e imaginários que formam uma geração híbrida ("quimeras, grifos, dragões alados").

          De certa forma, encontramos nas entrelinhas do texto de Monteiro uma alusão à teoria do grotesco, delineada por Diderot em Le neveu de Rameau, desenvolvida por Victor Hugo, no prefácio de seu Cromwell, e retomada pelos líricos modernos, pois, ao afirmar que "belas e augustas imagens" se acotovelam "com seres disformes", Monteiro aproxima o belo do feio não como valores opostos, mas como elementos que têm um mesmo valor expressivo.

          No período medieval, segundo Umberto Eco (1971, p. 206), os comentadores e os alegoristas procuravam definir com precisão cada um dos significados dos diferentes elementos arquitetônicos. E, a seguir, acrescenta:

no século passado assistimos a um fenômeno típico da história da arte, aquele em que, numa época dada, todo código [...] conota uma ideologia [...] Teve-se, então, a identificação "estilo gótico = religiosidade", identificação que se apoiava indubitavelmente em outros sistemas de conotação precedentes, como "impulso vertical = elevação da alma a Deus", e "contraste de luz atravessando vitrais e naves na penumbra = misticismo".

          Os códigos arquitetônicos abrem a possibilidade de diferentes leituras no curso da história. Leituras que levam à formulação de novas hipóteses e interpretações por parte dos historiadores. Leituras que implicam a renovação desses mesmos códigos quando feitos por arquitetos no momento de utilizá-los num outro espaço e em determinado tipo de sociedade.
          Monteiro faz também uma leitura particular desse código. A arquitetura medieval se lhe apresenta, pois, em duas manifestações absorventes: 1°. a atmosfera mística e fantástica que envolve o espectador, provocando-lhe uma resposta emocional; 2°. a estatuária que, dando concretude às formas abstratas, sugere uma nova relação entre o belo e o feio. O traço medieval não é o seu, mas a sua leitura propõe uma analogia entre o fazer poético e a visão plástica do artista medieval, na medida em que ambos os códigos privilegiam o símbolo como elemento estrutural.


          Da representação visual, implícita na arquitetura medieval, Monteiro ingressa no mundo da representação teatral, em um texto fragmentado e extremamente sintético.

          "Arrache-Coeur", "Brise-Barre", "Brise-Tête", "Courte-Epée", "Courre-Barbe", "Fier-à-Bras", "Ronge-Foie", "Tranche-Côte", "Tourne-en-Fuite", "Jongleurs", trovadores, menestréis: Os "mieux-disants", os "chapel de Roses" ["Arranca-Coração", "Quebra-Barra", "Quebra-Cabeça", "Espada-Curta", "Barba-Curta", "Ferrabrás", "Corta-Costela", "Giro-em-Fuga", "Jograis", [...] Os "mais eloquentes", os "chapei de Rosas"].
          "Jonglerie" e jogos de menestréis. Mistérios e Milagres: a criação, o dilúvio, a destruição de Sodoma. Limbos, purgatórios, inferno e paraizo [sic] dourado.
           Diabos vestidos de peles de animais, agitando campainhas, uivando, atirando petardos diante dos pórticos das catedrais, exibindo-se em parada através das ruas da cidade.

          Iniciando o Mistério, não lhe bastava um dia para a representação; de domingo em domingo, ele se prolongava, às vezes durante meses.
          O "meneur du jeu" (a Sombra, do teatro chinês ou o alto-falanre do teatro de Jean Cocteau), diretor da "troupe", fornecia a explicação do arranjo da cena aos espectadores.

          "A Paixão de Nosso Senhor Jesus-Cristo" [sic], o "Ato da Ressurreição", o "Mistério de Santa Catarina", etc.

          Mistérios e Milagres: primeiros ensaios de poesia espacial (Monteiro, 1941i, p. 19).

          O primeiro parágrafo articula-se baseado no acúmulo de substantivos compostos, que teriam a função de epítetos, utilizados para caracterizar a figura do trovador ou do menestrel.

          O articulista busca, talvez, na Idade Média, a ressurreição do mito do poeta como uma figura tríplice em que se unem o cavaleiro destemido, o enamorado e o fanfarrão. A caracterização do poeta é mais importante que a própria lírica trovadoresca, pois não há, no texto, referências à sua temática, às normas de cortesia, à adequação da letra com a música.

          Quanto ao teatro medieval, o que interessa ao articulista são as antíteses, os contrastes frequentes nos mistérios e milagres, e a representação propriamente dita. Assim, por meio de um jogo dinâmico de imagens, no qual cenas, cenários, atores e espectadores se entrelaçam, Monteiro valoriza o próprio espaço, ou melhor, a sintaxe visual como um elemento estrutural do poema.

          Retomando a imagem do "poeta tapeceiro", Monteiro passa a discorrer sobre as "Velhas tapeçarias de França". O texto se estrutura em três planos: o da cor, o do uso e o da temática.

          No primeiro plano, a harmonia cromática, nascida de tons quentes ("gaude, cochonilha, garância [sic], índigo") está conjugada ao relevo da tela ("gros fil", "fil delié") e impõe uma nova realidade ao poeta tapeceiro, isto é, "um mundo novo" que nasce "para  seu deslumbramento" (Monteiro, 1941i, p. 19).

          Num segundo plano, o articulista fala do duplo uso das tapeçarias:

Nos dias de festa reais, senhoriais ou religiosas, bem como nos torneios, desnudavam-se as frias muralhas interiores do cálido revestimento poético para exibi-lo nos balcões e janelas das fachadas ou nos pórticos das igrejas, entregando ao sol e à populaça as cores alegres de sua graça (Monteiro, 1941 i, p. 20).

          Dessa forma, a poesia mural ou a poesia de aposento, anteriormente confinada em cavernas, ganha uma nova dimensão, pois a possibilidade de deslocamento do interior para o exterior permite que sua fruição seja feita tanto por reis e senhores como por plebeus.

          Diante dos olhos do observador desfilam inúmeros quadros:

 

[...] o Apocalipse, a História de Alexandre, o Magno, da Virgem Nossa Senhora, de Carlosmagno [sic] e os nove Campeões, do Santo Graal; a Dama do Licornio [sic, por A Dama do Unicórnio]; Feitos e batalhas de Judas Macabeu; as Sete Artes, as Sete Ciências e os Sete Pecados: alegorias, moralidades; peças em verso, legendas ou rondós, máximas ou provérbios, o sentido simbólico explicado (Monteiro, 1941i, p. 20).

 

          A abordagem feita pelo articulista do ternário da tapeçaria medieval nos leva a depreender que essa se configura como uma forma de condensação dramática. Tal condensação se daria em dois níveis: no do observador, pelas relações que podem ser estabelecidas entre os elementos de cada quadro, quando postos lado a lado em balcões e fachadas; e no do articulista, englobando o rondó (composição poética), a moralidade (o género dramático semi-religioso), a legenda (relato de vida dos santos), máximas, provérbios e alegorias, que constituem, com a harmonia cromática e a plasticidade das figuras, o corpus da poesia de aposento.

          Posicionando-se como observador, a seguir, Monteiro faz uma interpretação livre das tapeçarias de Nicolas Bataille, La Dame à la Licorne, produzidas no século XV, e que podem ser vistas hoje no Museu de Cluny, em Paris. Essa interpretação ocorre de duas formas; a primeira, pela reprodução dessas tapeçarias em forma de gravuras (Figuras 34 e 35); nas quais o traço do ilustrador Monteiro é evidente; e a segunda, por meio de um texto, no qual o articulista descreve cada um dos detalhes que compõem o conjunto.

 

 

 

 

 

 

 

          É importante salientar, entretanto, que uma das preciosidades do acervo do Museu de Cluny, dedicado à Idade Média, é um conjunto de seis tapeçarias, do final do século XV. Cada tapeçaria desse conjunto sequencial apresenta

 

alegoricamente um dos cinco sentidos — a visão, o tato, o paladar, o olfato, a audição -, enquanto que a sexta contém uma inscrição — À mon seul désir — que torna, pela oculta origem da determinação desse desejo, mais intrigante a significação do conjunto (Pessanha et al., 1988).

 

          Em todas as tapeçarias encontra-se a mesma delicadeza, e, sobre um fundo vermelho, florido, observam-se pequenos animais, ficando em primeiro plano a Dama e, ao seu lado, dois animais heráldicos: o leão (à esquerda) e o unicórnio (à direita); às vezes, há ao lado da Dama uma figura menor, a da criada.

          Vejamos, pois, como esses elementos são retomados por Monteiro na sua interpretação de uma das tapeçarias de Nicolas Bataille (Figura 36):

 

 

 

 

          Sobre um belo tapete de flores rústicas, margaridas, morangos silvestres, "pois de sentem", cravos e trevos vermelhos, repousam imagens ternas, cães, coelhos, papagaios, perdizes, cordeiros, bodes, rapozas [sic], macacos e pássaros: pequeno paraizo [sic] terrestre. O leão, com as patas erguidas, conduz o estandarte o licornio, a auriflama e equilibra na testa a vara sideral unicornia — desfile clownesco ao som do órgão da Dama Virtude ajudada pela sua acompanhadora, a Dama Caridade que manobra o fole. Alternadamente, o Licornio e o leão entreabrem a tenda com uma pata, enquanto com a outra apresentam a auriflama, ou ainda conduzem placidamente os escudos e os estandartes (Monteiro, 1941i, p. 20).

 

          Trabalhando com o imaginário medieval, Monteiro retoma a ênfase dada anteriormente ao jogo entre o sacro e o profano, só que agora um tom irônico perpassa o seu discurso, ao colocar num mesmo plano as Damas, que personificam a Caridade e a Virtude, e as figuras heráldicas, como participantes de um mesmo desfile: o "clownesco". Entretanto, poderíamos afirmar que os elementos descritos servem-lhe apenas de pretexto, pois o centro de interesse está na lendária figura do unicórnio que, "com as patas pousadas nos joelhos da Dama, olha no espelho o belo passe de mágica" (Monteiro, 1941i, p. 20). A imagem do unicórnio refletida no espelho conduziria, pela mediação de vários tipos de espelhos, às construções imagéticas: "passe de mágica" que permite ao articulista estabelecer uma ponte entre a Idade Média e a Idade Moderna, na sua viagem através dos móveis da poesia.


          Dirigindo o seu olhar para a modernidade, Rego Monteiro procura individuar outros elementos que participam do mobiliário poético, oriundos do "Cinema", dos "Ballets", dos "Sports" e do Rádio ("T.S.F."). Utilizando-se, mais uma vez, de um discurso fragmentado e enumerativo, esboça em linhas gerais a especificidade de cada uma dessas linguagens e a

poeticidade que lhes é inerente. Poeticidade que permite a remodelação de elementos cristalizados pela tradição e que abre novas perspectivas para o jogo verbal imanente na linguagem poética.

          Em 1896 nasce o cinema, inaugurando uma nova era, a da imagem visual animada. Do seu início até a Primeira Guerra Mundial, o cinema foi sinônimo de entretenimento ou divertimento, passando, posteriormente, a ser considerado uma arte.

          Para Monteiro, o cinema também inaugurou uma nova era, a "da libertação do real pelo irreal, do real pelo sonho", e trouxe pela "'féerie' dos contrastes instantâneos, simultaneidade e ubiquidade, um sentido novo à poesia" (1941Í, p. 71). Seguindo os passos dos surrealistas, que

elegeram o cinema como o meio de expressão mais perfeito de sua doutrina, observamos que o articulista atribui à linguagem cinematográfica uma posição privilegiada em relação às outras artes ao afirmar que o cinema se tornou "rapidamente uma fonte permanente de poesia, de tal

modo rica que poderia 'constituir', por si só, um mobiliário interior de poesia" (Monteiro, 1941i,p.71).

          Utilizando-se de um processo semelhante ao da montagem cinematográfica, em que cada fotograma apresenta um traço a mais que o anterior, Rego Monteiro (1941i, p. 71) apresenta-nos uma série contínua de títulos de filmes:

 

          "O regador regado"... "O Filho Pródigo", o "Conde de Monte Cristo"; "La Glue", "Os mistérios de Nova York"; "La Roue", Dom Juan de L'Herbier; o Gabinete do Dr. Caligari; Metropolis; O milagre dos Lobos; O sangue de um Poeta, de Jean Cocteau; "Un Chien Andalou", filme surrealista [...j Tempestade sobre a Ásia; "L'0péra de Quat'Sous".

 

          Retomando o elo estabelecido anteriormente entre a Idade Média e a Idade Moderna, afirma que esses filmes "permanecerão para sempre em nossa imaginação como um belo tapete mural, arrastando-nos simultaneamente a uma viagem misteriosa, como uma nuvem rósea diante de uma escada" (Monteiro, 1941i, p. 71).

          A linguagem do cinema trabalha com planos médios, primeiros planos, doses, fragmentos temáticos, fragmentos de espaço e tempo de diferentes grandezas e entrelaça-os por meio da contiguidade, da similaridade ou do contraste, para criar relações novas a todo instante ou

sugerir ligações que propriamente não existem na tela. E essa é a impressão que temos do texto de Monteiro se o tomarmos num todo, pois, à medida que acompanhamos a composição do seu mobiliário poético, percebemos, por meio de um jogo de aproximações e contrastes entre

linguagens tão diversas no tempo e no espaço, uma série de correlações inusitadas.

          Outro exemplo desse mecanismo de aproximações e contrastes pode ser apreendido, no texto, quando Monteiro analisa as relações entre o bailado, a poesia, o cinema e o público:

 

          Os Ballets Russos e Suecos realizaram esta coisa admirável: a vida bela e caprichosa pela poesia.

          [...]

          Os ballets modernos, tardiamente chegados a um mundo muito estandardizado, cedo conheceram a desgraça das coisas perfeitas: a indiferença do grande público. O cinema pela possibilidade de projeção simultânea de um só filme em todas as salas do globo, iria atingir todas essas iniciativas complexas, pessoais e intelectivas (Monteiro, 1941i, p. 22).

 

          O texto tem também um caráter documental, pois registra a participação de diferentes artistas na produção desses espetáculos de dança e coloca em destaque a École de Paris, como ponto de convergência para a integração de todas as artes.

 

          BALLETS RUSSOS: Pawlova, Nijinska, Kasarvina, Nijinsky [sic\ [...]; Roerich, Benoit [...] Derain, Matisse, Picasse, Survage, Chirico, Juan Gris [...] Strawinsky, Prokoffief, Debussy, Ravel, Eric Satie, Darius Milhaud, Serge Diaghlew.

          Schérazade O Pássaro de Fogo [...] "LAprès Midi d'un Faune", "Le Sacre du Printemps", "Jogos" [...] "Lês Biches".

          "La Boutique Fantasque", pintura de Derain, música de Rossini, dansa [sic] de Massine.

          "Parade", poema-ballet de Jean Cocteau, pintura animada de Picasso, música de Eric Satie.

O Trem azul, poema de Jean Cocteau, cortina de Picasso, música de Darius Milhaud.

          BALLETS SUECOS: Jean Boslin, Rolfde Maré.

El Greco, As Virgens Loucas, o Túmulo de Couprin, música de Ravel; Ibéria, música de Albeniz; Dansgille, Noites de São João. "Lês Manes de Ia Tour Eirrél", poema-ballet de Jean Cocteau.

          [...]

Os ballets modernos, originários da Rússia e da Dinamarca conheceram o apogeu, associando-se à Escola de Paris, poética, musical e plástica (Monteiro, 1941i, p. 21-22).

 

          O fascínio de Rego Monteiro pela dança, contudo, nasceu em 1913, em Paris, quando assistiu aos bailados russos de Nijinski e Karsavina, no Théâtre des Champs Elysées. A suntuosidade, a técnica, o décor e os costumes dos bailados causaram-lhe, na época, uma profunda impressão, que se refletiria, posteriormente, na sua obra plástica e poética.

          Em 1918, quando regressa ao Brasil, Monteiro assiste à apresentação de seis espetáculos de Ana Pavlova, no Teatro Santa Isabel de Recife. Seu interesse pelo bale se renova, registrando os movimentos da bailarina em desenhos e croquis. Surge-lhe, então, a ideia de criar um bailado brasileiro, inspirado nas lendas dos nossos indígenas.

          Em 1921, nas exposições que realiza no Rio e em São Paulo, tenta levar adiante o seu projeto, apresentando alguns temas para bailado. Ronald de Carvalho, que apresentou sua exposição no Teatro Trianon, solicita "a cooperação de Villa-Lobos para a realização da parte musical" (Monteiro, 1994). Porém, não houve por parte desse ou de outros artistas brasileiros nenhum interesse em relação ao projeto do jovem pintor pernambucano.

          Rego Monteiro, contudo, ingressa no mundo da dança como um artista da École de Paris. Em 1923, desenha as máscaras, os figurinos e os cenários para o recital de dança do bailarino checo Malkovsky, no Teatro Femina.

          Saindo do mundo da dança, Monteiro penetra no mundo dos esportes:

 

          Os Dias Atléticos, Football, Ginástica, Boxe, Luta, Esgrima, Tennis, Aviação, Natação, Polo, Pesos e Halteres. Corridas a pé, 110 metros-barreiras, Cross-Country, 1500 metros, 10 quilómetros [sic], Maratona, etc. "SPORTS", "VIIIe. OLYMPIADE", poemas de Géo-Charles.

          Por estas duas admiráveis coletâneas de poemas, "Sports" e "VIIIe. Olympiatíe", poemas de grande poesia espacial, vastos afrescos de imagens atmosféricas, em que a expressiva amplitude atinge em beleza o largo lirismo do teatro antigo, Géo-Charles é o primeiro poeta francês a introduzir

os esportes na grande Poesia (Monteiro, 1941i, p. 22).

 

          Embora Rego Monteiro afirme textualmente que Géo-Charles é o primeiro poeta francês a introduzir os esportes na "grande poesia", constatamos que alguns antecedentes históricos o levaram a desenvolver essa temática em sua obra.

          Pierre de Coubertin introduziu nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, cinco concursos de arte (arquitetura, pintura, escultura, música e literatura) com o intuito de dar às

 

 

I — (vieux) Interprete; 2 — (litt.) Personne qui explique les intentions d'une nutre; 3 — (Figura et litt.) Reedite qui exprime, traduit une autre reedite; 4 — (courant) Par lê truchement de: par 1'intermédiaire de (Le Dictionnaire. ..,1990).

 

I - (antigo) Intérprete; 2 - (liter.) Pessoa que explica as intenções do outro; 3 - (Figura e liter.) Realidade que exprime, traduz uma outra realidade; 4 (Farn.) por intermédio de.

 

          As duas últimas acepções do termo truchement, unidas ao significado de quadricromia, sintetizam, de certa forma, a concepção poética de Rego Monteiro, isto é, uma realidade que traduz uma outra realidade pela intersecção de planos, cores, sons e imagens.

          Já a anáfora põe e repõe diante do nosso espírito a tessitura sobre a qual repousa todo o texto de Monteiro. Este se divide em duas partes, e cada parte em quatro módulos, sempre encabeçados por títulos, que podem ser lidos e apreciados isoladamente como se fossem quadros expostos numa galeria. Na primeira parte, o articulista inicia suas reflexões no período paleolítico, estendendo-as até a Idade Média. A pintura rupestre, a arquitetura gótica, o teatro e as tapeçarias medievais são os quatro elementos que compõem o mobiliário interior da poesia de aposento, da poesia de fachada e da poesia espacial. Na segunda parte, em que o foco da atenção recai sobre a Idade Moderna, o mobiliário da poesia espacial é ampliado graças a outros quatro elementos: o cinema, os bailados, os esportes e o rádio. Essa estrutura fragmentada não é aleatória, obedece a uma construção. Os primeiros módulos se

fundem aos últimos num espaço quadrangular, para compor o cubo, signo icônico da poesia. Dessa forma, seguindo os princípios cubistas, Vicente procura, mediante a decomposição e a geometrização de planos, apreender em sua totalidade o mobiliário interior da poesia, criando possibilidades para que os seus diferentes aspectos sejam simultaneamente lidos e contemplados.

          Paradoxalmente, essa poesia enriquecida no seu mobiliário, através dos tempos,

 

hoje [...] procura o seu poeta ou o seu Museu. Esperando, ela se abriga nas realizações efémeras — que são certamente as mais duráveis — num rápido "trailer", sobre os tablados dos saltimbancos, num campo de Football [sic], no Circo, num microfone, entre os loucos ou num Congresso de Poesia (Monteiro, 1941i, p. 23).

 

 

Uma programação estética

          A tese apresentada por Rego Monteiro no 1° Congresso de Poesia do Recife vem acompanhada de um "Pequeno memento para os artistas e poetas", composto de uma série de aforismos que valem por uma programação estética:

          A pintura é a filosofia do desenho e da cor; a escultura a da forma. A poesia é a filosofia do abstrato.
          O pintor, o escultor e o poeta são os seus sofistas.
          O absurdo é o senso comum dos artistas, dos poetas e dos loucos.
          A "verdade" é o senso comum dos sectários.
          O diletantismo, ociosidade do espírito, é o maior inimigo da obra de arte (Monteiro, 1941f, p. 25).

 

Enfeixando a Arte e a Poesia sob um denominador comum, Monteiro procura expressar as relações invariantes que existem entre elas, contrapondo-as ao discurso enganoso da linguagem do poder.

          A Arte na acepção plástica e poética é uma promessa inatingível.
          A Política uma promessa para atingir.
          [...]
          Para a política a fórmula é um ponto de partida.
          Para a arte a fórmula é um ponto de parada.
          Para o artista a fórmula é um "trompe l'oeil", para o político o meio de            enganar os outros.
         [...]
          Os revoltados políticos pedem pão para o corpo social.
          O poeta e o artista o alimento para o espírito.
          Os primeiros serão saciados, os outros nunca.}
          A revolução política e a revolução artística às vezes se encontram           paralelamente, mas não perseguem o mesmo fim. Daí a grande confusão
          que existe em nossa época, entre arte e poesia de vanguarda e
          social.
          A revolta social é uma vaga de profundidade.
         
A revolução artística é uma ascensão estratosférica com rupturas de
          amarras.
          A Arte e a Poesia, não perseguindo fins utilitários, são revoluções em estado
          permanente.
          A revolução social procura estabelecer uma nova ordem, portanto, uma nova
          cristalização acadêmica.
          [...]
          A Poesia como Fénix renasce de suas cinzas.
          A Revolução social toma forma das cinzas do adversário (Monteiro, 1941 f,
          p. 26- 28).

 

          A linguagem plástica ou poética serve não para velar, mas para revelar uma ordem sociopolítica já cristalizada. Entretanto, ao desmistificar a linguagem do poder, Monteiro desmistifica também a linguagem das artes, afirmando que "a verdadeira poesia não tem cabeça nem braços" (1941 f, p. 28).

          O texto de Monteiro propõe-nos, ainda, uma releitura do simbolismo fonético ao tentar representar graficamente a percepção dos sentimentos humanos, ou seja:

 

[...] a amizade será representada por um quadrado com traços repousamos horizontais. O ódio por traços agressivos verticais. O amor pelo cruzamento dos dois. O riso como o choro por linhas oblíquas em sentidos opostos, porém com a mesma inclinação. A alegria por um quadrado branco pontilhado símbolo de sua porosidade. E pela superposição de uns aos outros acharemos os valores dos

sentimentos secundários (Monteiro, 1941 f, p. 26).

 

          Tal gráfico nos remete a uma experiência feita por um dos fundadores da Teoria da Forma, Wolfgang Köhler. Procurando estabelecer uma relação entre determinadas formas visuais e certos sons, criou

 

duas palavras foneticamente opostas, takete e maluma, e apresentou-as a sujeitos de diferentes línguas com duas figuras geometricamente opostas: uma, angulosa, e outra, curvilínea. Perguntou, depois, qual figura poderia ser chamada de takete e qual de maluma (Bosi, 1993, p. 43).

 

          A maioria dos indivíduos questionados relacionou o termo maluma à figura curvilínea, e o termo takete, à figura angulosa.
          Segundo Alfredo Bosi (1993, p. 43),

 

a tendência ao isomorfismo existe, mas não é universal. É provável que se dê uma associação frequente de fonemas tensos e surdos com a experiência de objetos cheios de quinas e arestas, e uma associação de fonemas frouxos e sonoros com a experiência de objetos arredondados.

 

          Outras associações diversas podem ocorrer. As inferências gráficas de Rego Monteiro não podem ser tomadas como valores absolutos. Sua visão plástica da realidade o conduziu a esse mecanismo de associações, que poderia ser diferente para um outro sujeito ou um outro grupo de pessoas.

          Esse gráfico dos sentimentos, cujo grau de aceitação ou rejeição é passível de discussão, remete-nos a uma polêmica milenar entre os filósofos gregos presente no texto de Platão, Crátilo. A discussão gira em torno da Thései (relação convencional entre o significante e o significado) defendida por Hermógenes e da Physei (relação natural entre o significante e o significado) defendida por Crátilo. Tal polémica será retomada por Ferdinand de Saussure, no seu Curso de linguística geral, ao tratar da arbitrariedade dos signos. Não se pode negar que existe uma intenção imitativa nas onomatopéias e um valor expressivo nas interjeições, mas, como o próprio Saussure nos mostra, elas são pouco numerosas e sua escolha é de certa forma arbitrária e convencional, pois sofrem transformações de uma língua para outra.


          Alfredo Bosi (1993, p. 40), analisando "O som no signo", ressalta o poder sinestésico de certas palavras

 

que carreiam efeitos de maciez ou estridência, de clareza ou negrume, de visgo ou sequidão: fofo, retinir, clarim, guincho, roufenho, ronronar [...J lesma, lasca, rascante... A expressividade impõe-se principalmente na leitura poética, em que os efeitos sensoriais são valorizados pela repetição dos fonemas ou seu contraste. E a Estilística não tem feito outra coisa senão multiplicar exemplos de "harmonia imitativa", "eufonia", "imitação sonora", "pintura sonora", "simbolismo fonético" ou, mais recentemente, na esteira de Peirce, "iconicidade", termo talvez menos justo, pois implica a ideia de uma estrutura visual inerente à palavra [...].

 

O próprio Rimbaud (1964, p. 130) declara, no texto "Alquimia do verbo", que inventou a cor das vogais: "A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde". A correspondência entre determinado som e determinada cor nasce de uma associação puramente arbitrária, inventada pelo poeta e não possui nenhum embasamento científico:

 

Eu regulei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, gabei-me de inventar um verbo poético acessível, um dia ou outro, a todos os sentidos. Eu me abstinha de dar a tradução (Rimbaud, 1964, p. 130).

          Podemos, contudo, afirmar que na linguagem poética o signo é motivado. A elaboração poemática implica uma seleção estético-vocabular, havendo, portanto, motivo por parte do escritor em escolher determinados signos e rejeitar outros. Se essa seleção, a priori, é arbitrária, deixa de sê-lo no instante em que o poema nasce, pois os signos são escolhidos em razão de uma intenção estética. O poeta ou o escritor os emprega visando à invenção, à originalidade, à conquista heurística.

          Trabalhando, sobretudo, com a imagem, Rego Monteiro busca transformar o signo arbitrário em necessário e, no caso específico do seu gráfico, ampliando as latências simbólicas dos elementos geométricos, formula uma estrutura visual capaz de integrar a percepção dos sentimentos humanos em formas diferentes.

 

ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi.  Prefácio. Escorpionagem. O que vai na valise. In: CORTÁZAR, Julio.  Valise de cronópio.  São Paulo: Perspectiva, 1993.
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MONTEIRO, Vicente do Rego. 1º Congresso do Poesia do Recife, Renovação, ano III. N. 2, mar. 1941.
PERRONE-MOISÉS, Leyla.  Falência da crítica.  São Paulo: Perspectiva, 1973.

RIMBAUD, Arthur. Alchimie du verbe. In: Ouvres poétiques. Paris: Garinier-Flammarion, 1964.SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira.  São Paulo: Difel, 1982. 
TELES, Gilberto Mendonça.  Vanguarda europeia e modernismo brasileiro.  Rio de Janeiro: Vozes, 1972.

 

Página publicada em maio de 2015.

 

 

 
 
 
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